Há 25 anos, em um 10 de maio de 1999, a “televisão do ano 2000” saía do ar em definitivo. O sinal da Rede Manchete era substituído pelas transmissões da TV!, que em novembro foi transformada em RedeTV!. Laguna teve uma pequena parcela de contribuição na trajetória da emissora da Família Bloch.
Inaugurada em 1983, a Manchete foi idealizada pelo empresário Adolpho Bloch, dono da histórica revista Manchete, e foi facilitada com a redistribuição das concessões televisivas que faziam parte da Rede Tupi, extinta em julho de 1980.
Com uma forte ligação jornalística, a nova rede se destacou com programas como o Jornal da Manchete e o Programa de domingo e teve um papel importante também na teledramaturgia. Alguns investimentos no setor surpreenderam e gravaram seu nome na história televisiva nacional. São exemplos dessa lavra as telenovelas A história de Ana Raio e Zé Trovão, Xica da Silva, Pantanal e Dona Beija – sendo que a terceira ganhou um remake pela TV Globo em 2022 e a última será levada ao ar novamente no streaming Max no próximo ano. Minisséries como Marquesa de Santos e Filhos do Sol também estão nessa lista.
“A Manchete teve papel crucial e uma contribuição vital para o desenvolvimento da teledramaturgia brasileira. Seja explorando temas dos mais diversos, mostrando a cultura nacional, seja por explorar novas estéticas e linguagens. Temos verdadeiras obras primas e minissérie antológicas”, destaca Elmo Francfort, diretor Museu Brasileiro de Rádio e Televisão (MBRTV) e autor de livros como Rede Manchete: aconteceu virou história e A história da Televisão Brasileira para quem tem pressa.
É na teledramaturgia que Laguna apareceu na tela da Manchete. O canal gravou aqui e em Florianópolis cenas da minissérie Ilha das bruxas, baseada nas velhas lendas místicas que rondam o litoral catarinense. “Reunindo em torno de 100 pessoas, a Rede Manchete de Televisão, desde 4ª feira realiza em nossa cidade as gravações da minissérie ‘As Bruxas de Santa Catarina’ [sic]. Com o Laguna Tourist Hotel, servindo de ‘QG’, os locais de gravação em Laguna acontecem na Passagem da Barra, Farol de Sta. Marta e Campos Verdes”, narrou uma edição do jornal O Renovador, em janeiro de 1991. Assista acima uma chamada da exibição da minissérie.
A produção da Manchete contava com um elenco que tinha, entre outros nomes, com Júlia Lemmertz, Umberto Magnani e Mirian Pires. Baseado nos escritos de Franklin Cascaes, a montagem televisiva voltava para o ano de 1919 e contava sobre um jovem pescador alvo de inveja humana e das bruxas. O texto foi de Paulo Figueiredo, com direção de Henrique Martins e Álvaro Fugulin. O custo na época foi de cem milhões de cruzeiros com uma audiência de 12 pontos no Ibope de São Paulo, de acordo com o Jornal do Brasil.
Francfort pontua que a gravação em solo catarinense fazia jus aos slogans do canal: O Brasil que o Brasil não conhece e O Brasil passa na Manchete. A importância de ser vista nacionalmente fez com que uma celebração fosse feita para comemorar a aparição. Um grande evento no Tourist teve a participação do elenco da minissérie – havia uma festa semelhante no mesmo dia e horário na capital, mas os artistas permaneceram na cidade juliana. “Num telão montado [assistiram] o primeiro episódio, onde mais uma vez ficou demonstrada e comprovada a qualidade Manchete, mostrando a beleza natural (90% das cenas foram locadas em Laguna)”, descreveu o mesmo jornal. “É impressionante que, mesmo depois de 25 anos do seu fim, ainda hoje a Manchete é lembrada por suas produções e pelo carinho do público que a acompanhou de 1983 a 1999. Inovar, ousar, acabou também sendo um preço caro que a Manchete pagou, mas que ao mesmo tempo a torna inesquecível. Por muitos anos ela brigou pela qualidade e não apenas pela audiência entre as emissoras”, frisa Francfort.
Segundo pesquisa de Nilson Xavier, no portal Teledramaturgia, a minissérie teve 16 capítulos e foi ao ar originalmente de 4 a 28 de março, no horário das 22h30. Posteriormente, foi reeditada para reapresentações em 1992 com 23 capítulos e 1994 com 20. Um detalhe que chama a atenção foi a ausência de uma trilha sonora cantada, onde as músicas incidentais eram formadas por cantos e gemidos de mulheres, “o que dava um tom soturno à produção, condizente com a proposta da minissérie”.
“Foi uma coisa muito gostosa de fazer, porque você recebe todos os capítulos de uma só vez. Então, quando a gente foi pro Sul já conhecíamos toda a história e deu pra produzir com bastante cuidado. Montamos uma cidade cenográfica num vilarejo de pescadores e tivemos que produzir muita coisa no local, até pra se adequar aos costumes da região. Saíamos com o caminhão da Manchete lotado. Arte, cenografia e figurino… trocávamos muita informação antes, durante e depois das gravações”, lembrou Denise Dourado, em depoimento para o livro Rede Manchete: aconteceu virou história.
TV Manchete ficou no ar por quase 16 anos
A Manchete entrou no ar em 5 de junho de 1983. O grupo tinha cinco emissoras próprias nas capitais do Rio, São Paulo, Ceará, Minas Gerais e Pernambuco, e contava com uma série de afiliadas pelo país – em Santa Catarina, o sinal da emissora era transmitido através da TV Barriga Verde, de Florianópolis (atualmente vinculada à Band TV).
Com uma programação que prezava pela qualidade, com transmissões que se destacavam no Carnaval por exemplo e apostas em produtos como as séries japonesas, o canal conquistou níveis de audiência que impressionavam. Pantanal foi um fenômeno fora da curva, raras exceções do passado de produções que prenderem o telespectador fora do universo televisivo da TV Globo.
“Sinal de que a importância existe e as menções que se fazem a ela, até mesmo na programação infanto-juvenil, desenhos, séries, teledramaturgia e seu inconfundível desfile de Carnaval”, sustenta o diretor do MBRTV. O canal, ao longo dos quase 15 anos, soube contribuir com o desenvolvimento da televisão nacional, sobretudo nas inovações e busca pela qualidade. “Quando estreou, era a mais tecnológica emissora de TV do país e uma das mais modernas da América Latina. Muito da estética que ela trouxe também podemos ver hoje refletida nos profissionais que criaram a fotografia da TV paga e hoje até dos serviços de streaming”.
Todavia, a Manchete viveu com insucessos financeiros, que corroeram a vida da emissora na década de 1990. Em 1993, chegou a ser vendida para o grupo IBF e em 1999 foi arrendada para a Igreja Renascer, mas sempre voltava para o comando dos proprietários originais. Como resultado, houve atrasos de salários que refletiram na capacidade de produção da estação. A situação melancólica se arrastou até 1999, quando os canais foram adquiridos pela empresa TV Ômega, que pôs no ar a RedeTV! em novembro daquele ano – a rede que substituiu a Manchete teve sinal em Laguna entre 2000 e 2008, durante o período que o Grupo SCC foi afiliado à emissora; atualmente, transmite a programação do SBT.
O espólio da antiga rede enfrentou ao longo dos anos várias tentativas de leilão desde o fechamento do canal, com intenção de que o dinheiro obtido sanasse as dívidas que existiram mesmo após a falência. Mais recentemente, em 2021, um lote de fitas com algumas produções do canal, incluindo Ilha das bruxas e a censurada O marajá, foi leiloado pelo valor de R$ 240 mil. “Fica a reflexão de como seria a televisão hoje se ainda tivéssemos a Manchete? A história talvez hoje fosse outra”, pontua Francfort.