Educação como forma de superação: ‘Recuperar o tempo perdido’

Incentivada sempre a estudar, Maria Ana, que viu seu desejo de ter mais conhecimento e poder crescer ser represado durante boa parte de sua vida, celebrou seu 39º aniversário na última sexta-feira, 26, da melhor forma possível: matriculada em um curso de Biblioteconomia, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), começou a ter suas aulas à distância no polo de ensino da Universidade Aberta do Brasil (UAB).
Maria Ana no polo EAD – Arquivo pessoal

“Nunca desista de seus sonhos. Tenha força e confiança em si mesmo. Você pode, você consegue. Coloca Deus acima de tudo e batalhe pelo que quer na vida. A sua mudança depende de você, basta querer e confiar”, diz Maria Ana da Silva Andrade, 39 anos.

Dicionários muito usados em escolas descrevem guerreira como aquela mulher que tem característica de ser lutadora, de batalhar para conquistar um objetivo. É assim que a autora da frase, que abre esta reportagem, se define ao olhar para sua própria história, uma trajetória marcada por obstáculos e sofrimento, mas recheada de muita esperança e garra de vencer na vida. Aninha, diminutivo de seu segundo nome que usa como apelido, é um sinônimo de resistência e que busca recuperar o tempo perdido, fazendo aquilo que sempre desejou: estudar.

Maria Ana é nordestina do Rio Grande do Norte. Nasceu na cidade de Areia Branca, na região da Costa Branca, mas foi criada desde pequena em Mossoró, segunda cidade mais populosa depois da capital potiguar Natal, que fica a 281 quilômetros. A trajetória dela pode começar a ser contada deste ponto. Ainda criança foi adotada por uma família.

“Sou grata pelo que a minha família fez e ainda faz por mim. Quando me adotaram, deram muito carinho. Aos cinco anos de idade, minha mãe adotiva faleceu, e quem continuou a me criar foi minha irmã e o meu cunhado. Tendo ela a opção de me devolver para uma instituição, mesmo assim optou por terminar de me criar e me incentivar ser alguém na vida”, reconhece.

Aos 16 anos deixou o lar materno para viver com o primeiro marido e viu seus sonhos serem represados pela primeira vez. Desejava estudar, mas a vontade foi adiada por uma década e meia. O ex não a deixava sair de casa, a agredia e tentou matá-la certa vez, expediente repetido com os dois filhos do casal. “Sofri muito. Não queria que estudasse, trabalhasse, me trancava em casa, não me deixava sair, nem visitar meus familiares. Era um cárcere privado até que denunciaram e ele foi preso. Ainda fugiu da cadeia e tentou nos matar, mas consegui fugir e ele foi detido de novo”, relembra.

Divorciada, resolveu recomeçar a vida com um rapaz do Rio Grande do Sul que conheceu pela internet e chegou a morar um tempo com ela em Mossoró. Foi por esse relacionamento que Maria Ana se desfez das posses na cidade potiguar e veio morar em Imbituba, em novembro de 2015, mas foi em Laguna que o novo casal se estabeleceu meses depois. A história ganha novos contornos ao avançar no tempo. Com dinheiro conquistado com o trabalho no novo município, pôde comprar um terreno em uma área ainda hoje polêmica: o loteamento clandestino Novo Horizonte, formado por famílias carentes – muitas ludibriadas – em cima do que deveria ser utilizado industrialmente pela extinta Companhia de Desenvolvimento Industrial de Santa Catarina (Codisc).

Arquivo pessoal

É dela uma das imagens que se tornaram virais naquele 13 de setembro, quando a Justiça mandou fazer a reintegração de posse e pôr abaixo as casas erguidas ali, a maioria de madeira. Maria Ana foi fotografada amamentando o filho, recém-nascido, enquanto assistia às demolições. Dali, foi abrigada no salão paroquial da igreja São Pedro Apóstolo, de Cabeçuda. Também foram mais alguns moradores que não tinham para onde ir após a extinção do loteamento. Quase cinco anos depois, o local segue sem definição de uso.

“Foi uma das piores situações que passei na vida. Saber que tudo que tinha foi destruído e que não tinha uma roupa para vestir, nem eu nem meus filhos, que eu e minha família não tínhamos o que comer e nem onde dormir. Deitava num colchão no chão com meus filhos preocupada com o que seria de nós no outro dia. Um desespero grande sem conhecer ninguém na cidade, longe da minha família e ter que pedir para sobreviver. O pior de tudo era engolir o choro de desespero para meus filhos não verem, pois teria que ter forças para acalmá-los e acreditar que Deus estava ali todo tempo e que pela fé ele nos ajudaria de alguma forma”, recorda.

Ela lembra que uma mulher a procurou para adotar o filho mais novo, ideia que foi negada categoricamente. “Minha mãe biológica me abandonou. Sei o que é crescer longe de uma mãe e jamais deixaria isso acontecer com meus filhos”. Paulo Miguel, que hoje tem três anos, ficaria conhecido como o “bebê do abrigo”.

O novo companheiro a deixou pouco tempo depois. Alegou que não queria assumir a responsabilidade de uma família, além de tratá-la mal, agindo com preconceito por ela ser nordestina. “Um dia foi trabalhar, levou as malas e não voltou mais”. Sozinha, com três filhos para criar, apenas com conhecimentos básicos, uma cidade desconhecida e vivendo com ajuda de grupos solidários que doavam alimentos, roupas e móveis para mobiliar sua nova casa, Maria Ana não desistiu e começou a trabalhar da forma que pôde.

“O bebê do abrigo” – Foto: Gabi Rambo/Novo Horizonte Socorro

Voltou aos estudos através do Centro de Educação de Jovens e Adultos (Ceja), concluiu os níveis de ensino necessários. “Era uma aluna muito boa, muito dedicada”, descreve a assessora de direção do Ceja, Andréa Matos Pereira. Depois, passou num processo seletivo da prefeitura de Laguna para auxiliar de serviços gerais. O que para alguns pode significar pouca coisa, para Aninha foi o recomeço de uma trajetória marcada pela resiliência. Porém, mesmo assim não foi fácil, tendo que conviver com preconceitos xenofóbicos e linguísticos, novamente, por ser de origem de um estado do Nordeste. Sem desanimar, continuou.

“Fiz novamente o processo seletivo e gabaritei, tirei 10! As pessoas me perguntam o motivo de me esforçar tanto para trabalhar com limpeza e eu digo que é um emprego bom. Não vejo vergonha em trabalhar limpando escola; é com esse dinheiro, com esse suor, que eu sustento uma casa, pago aluguel e sobrevivo com meus filhos. Sou grata a Deus por qualquer oportunidade que me aparece”, afirma.

Incentivada sempre a estudar, Maria Ana, que viu seu desejo de ter mais conhecimento e poder crescer ser represado durante boa parte de sua vida, celebrou seu 39º aniversário na última sexta-feira, 26, da melhor forma possível: matriculada em um curso de Biblioteconomia, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), começou a ter suas aulas à distância no polo de ensino da Universidade Aberta do Brasil (UAB). “Procurei o polo pois não tenho computador em casa e eles abriram as portas para mim. Até concluir, vão dar uma força e vou fazer de tudo para passar”.

Em todos os momentos de sua vida, Aninha buscou na família adotiva a sustentação necessária e nos filhos, a inspiração para seguir adiante. É o mais velho, Jesyel, 17 anos, que fala em nome dos irmãos e não esconde a admiração que tem pela mãe, a quem revela que a história de vida “emociona muito”. “Eu que entreguei o certificado no dia da formatura dela e fico feliz por ela ter passado por isso tudo, e conseguir chegar até aqui. Estou muito orgulhoso por ela ter tirado uma nota boa na prova da prefeitura, gabaritando, e conseguido uma vaga de emprego. Fico feliz em saber que agora está cursando uma faculdade. Isso mostra o quanto minha mãe é guerreira e batalhadora, e nos deixa um grande exemplo. Uma mãe que amamos muito”, diz o adolescente.

O curso que Maria Ana faz tem duração de quatro anos, segundo informa o site da Udesc. Para quem nunca desistiu dos sonhos, esperar pela conclusão passará rápido. “Estou recuperando o tempo perdido e voltando a estudar como eu sempre quis e não podia antes. Estudo para lá na frente poder dar uma vida melhor para os filhos”, pontua, a agora universitária, Maria Ana Andrade da Silva.

Arquivo pessoal

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