Mais imponente cineteatro de Laguna e o único que sobreviveu para contar história, o Cine Mussi completa 70 anos nesta quinta-feira, 17. Inaugurado com casa cheia, a estrutura se destacou no Sul por ter os melhores equipamentos e por ser a parada principal dos filmes brasileiros lançados entre os anos 1950 e 1980.
O primeiro registro de exibição cinematográfica em Laguna data do começo do século XX, época que surgiu o primeiro cinema do município: o Central, aproveitando a estrutura do Teatro Sete de Setembro, fundado em 1858. A cidade viu surgir ainda os cines Arajé, Glória, Saturno e Natal, entre os anos de 1930 e 1950.
Nesse meio, os irmãos João, Carlos, Mussi e Antônio Dib Mussi, resolveram erguer um cinema. A construção foi iniciada por volta de 1947, em um terreno que tinha apenas árvores, onde as crianças brincavam, no Centro da cidade. Para a montagem da planta da edificação, foi convidado o arquiteto suíço Wolfgang Ludwig Rau – ele foi o autor do projeto construtivo de outros cinemas no estado e ficou marcado pelo trabalho de pesquisa biográfica sobre Anita Garibaldi.
De São Paulo, vieram modernos projetores a carvão da marca Simplex; de Rio Negrinho, vieram as poltronas. “Todo o interior desse majestoso prédio, é de um acabamento impecável, destacando-se o harmonioso conjunto artístico do teto, com a graciosidade das paredes laterais, a par de uma iluminação toda indireta, formada de mais de 1800 lâmpadas”, observou um artigo do jornal O Albor, quando o prédio ainda estava em construção.
Outro relato encontrado no jornal, de autoria de Antônio Sbissa, falava sobre a grandiosa estrutura: “Queríamos sentir de perto a grandiosidade daquele amplo salão de projeção, digno de São Paulo, Rio e outros grandes centros. Francamente que não acreditamos que tão formidável empreendimento fosse um dia realizado com maior completo êxito, com suas modelares poltronas estofadas, suas instalações de luxo sóbrio e de linhas perfeitas, revertidas de uma pintura artística, de nuances admiráveis. O forasteiro que entra no Cine Teatro Mussi, sente desde logo invadir o seu eu, a segurança de bem-estar e a perfeita satisfação das horas que irá passar, conjuntamente com os outros mil assistentes, dentro daquele ambiente que transporta-nos às grandes capitais”.
Os atos solenes de inauguração do Cine Mussi naquele dia 17 de dezembro de 1950 foram acompanhados por vários olhares atentos. Às 21h, a exibição de “A Valsa do Imperador”, filme americano de 1948, foi um êxito de bilheteria. “Foram seus proprietários obrigados a mandar suspender a venda de entradas, antes do inicio da sessão, verificando-se ter sido grande o numero de pessoas que por esse motivo tiveram que voltar a seus lares”, registrou o jornal.
A participação do Mussi na sociedade chegou a gerar inclusive um programa de rádio, onde eram tocadas as trilhas sonoras das películas. As lembranças dos lagunenses, entre cinéfilos e funcionários da empresas, foram registradas em um minidocumentário pelo Iphan. Assista:
Os protagonistas
A família Mussi tem origem libanesa. O mais velho dos cinco irmãos, João, imigrou para o Brasil aos 16 anos. Na sequência, vieram Carlos, Mussi Dib, Antônio e Vitória, que se estabeleceram na região Sul, principalmente em Laguna.
“Tio João veio do Líbano aos 16 anos num navio para ganhar a vida. Não falava nada de português e conta a lenda que ao caminhar no Brasil a pessoa dava uma topada do chão e poderia ter a sorte de ser uma pepita de ouro”, recorda Evandro Daux Mussi, 57 anos.
À exceção de Vitória e Antônio, os três irmãos montaram uma sociedade. A loja da família ficava localizada na rua Raulino Horn, onde atualmente está sediada a agência do INSS.
“Meu pai dizia que chegou a ser uma potência do Sul do Brasil. Era um atacado de tecidos”, conta Evandro. A família também foi proprietária de um casarão, construído pelo engenheiro Cândido Gaffrè, em 1920, e que foi adquirido pelos Mussi em 1925. O imóvel passa por processo de restauração.
Essa residência ficou sendo de veraneio para as famílias Daux, Mussi e Boabaid. “Todo verão era uma mudança no princípio de janeiro, era uma caminhão que saia do centro e levava toda mudança pois nada podia ficar na casa devido aos vários roubos. Uma vez ainda criança fomos em cima deste caminhão”, recorda.
“Nossa família tem muita história em Laguna também no lado filantrópico”, diz Evandro. É lembrada até hoje no município, a devoção de dona Joana Daux Mussi, também libanesa, mas que veio ainda criança para o Brasil. Em 1938, foi eleita presidente da Associação Beneficência e iniciou a construção de um abrigo para os idosos, que viria a se tornar o Asilo Santa Isabel em 1949. Hoje, os Daux-Mussi estão estabelecidos na cidade de Florianópolis, capital do estado, atuando no ramo da hotelaria
A decadência
A trajetória de um cinema de rua, como foi o Mussi, pode ser comparada ao de um filme com um final fadado a ser trágico: tem seu auge e, quando tudo parece caminhar bem, o protagonista sofre um revés inesperado que o faz ficar sem forças para continuar a trilhar seu rumo.
A professora Renata Rogowski Pozzo, do Departamento de Geografia da Udesc de Laguna, que organizou um projeto de extensão para resgatar a memória do cinema de rua em Laguna (os ‘achados’ estão registrados no livro O cinema na cidade, lançado em 2016), aponta uma tese para o desaparecimento das salas de exibição.
“Desde os anos 1970, houve uma queda no número de salas de exibição instaladas em nosso país. Esta queda, além de estar relacionada à expansão da televisão, está também associada ao surgimento de novos padrões tecnológicos na exibição e de organização comercial, para os quais poucos empresários brasileiros estavam preparados para se adaptar. A partir dos anos 1990 ocorre a entrada de grandes empresas estrangeiras no segmento de exibição no Brasil (Cinemark e UCI, por exemplo)”, analisa a professora.
Essas formas citadas pela docente são responsáveis por cerca de 90% do mercado de exibição de cinema no Brasil atualmente. Estas empresas trouxeram o conceito de multiplex, caracterizado pela reunião de várias salas associadas a grandes empreendimentos comerciais (shoppings centers). Na cidade juliana, entre 1999 e 2002, existiu o Cine Laguna instalado no antigo Shopping Tordesilhas, um exemplo desse conceito.
“O Cine Mussi, assim como outros cinemas presentes no centro tradicional de Laguna na metade do século XX, a exemplo do Cine Roma (inaugurado um pouco depois, em 1965), eram pontos modais de uma rede de sociabilidade urbana. Por isso, o fechamento das salas de cinema impacta a vida do centro, especialmente a noite”, comenta a professora.
O Mussi fecha oficialmente em 1992. Depois vai ser utilizado por uma igreja evangélica e por um tempo foi sede de secretaria municipal. Na década de 2000, a parte de cinema foi interditada pelo fato de a instalação elétrica ter ficado obsoleta. Apenas o setor comercial, que funciona nas laterais do prédio pôde continuar ativo.
Renascimento
Mas como toda boa história de filme pode permitir uma reviravolta, fazendo com que o protagonista voltasse à vida, e conseguisse terminar sua trajetória renovado, o Cine Mussi não fugiu a regra. Em 2009, o extinto Ministério da Cultura fez estudos e comprou o prédio que pertencia à família Mussi por R$ 812 mil para poder restaurar o prédio e devolvê-lo à sociedade lagunense.
Foram cerca de três anos de obras para renovar o prédio. As obras contemplaram a restauração geral do edifício, incluindo instalações de segurança, acessibilidade, equipamentos de projeção e sonorização, além de um anexo com camarins, sanitários e área de suporte técnico. O serviço foi promovido pelo Iphan no valor de R$ 7,23 milhões.
A renovação completa do cineteatro foi garantida com a assinatura de um contrato de cessão com o Sistema Social do Comércio (Sesc). A partir daí, mensalmente o órgão passou a apresentar uma programação de filmes e peças culturais.
Esse sentimento de renascimento é confirmado por Maria Cecília Coelho, ex-técnica de Cultura do Sesc, que teve participação nas programações do Mussi. “Na primeira semana que comecei a trabalhar, tive três apresentações. Deixamos o cine aberto para limpeza e várias pessoas entravam pela porta lateral e muitas nem sabiam que o Mussi estava aberto”, relembra.
“De repente chegou um senhor todo emocionado, que aceitou uma água e ficou quieto olhando tudo aquilo. Até que ele contou que conheceu a esposa dele ali, que foram assistir um filme e tudo mais”, relata Cecília. “Ele falou que tinha perdido a esposa há cerca de dois anos e que ela amaria saber que o Mussi tinha reaberto, pois quando vinham passar temporada aqui, sempre olhavam e pensavam ‘que pena estar fechado'”, completa.
No palco do Cine Mussi, grandes nomes do teatro passaram e nas telas, grande atores e atrizes atuaram. Para alguns lagunenses, a estrutura tem lugar cativo em suas trajetórias. É o caso da jovem bailarina Maria Eduarda Machado, de 19 anos.
“Minha primeira apresentação e também a minha última antes da pandemia também foi no palco do Cine Mussi. Eu gosto de pensar que cada teatro é um grande museu, que coleciona histórias de artistas que já passaram naquele espaço”, comenta a jovem. “É no palco que o artista recebe o amor do público. Então, se a gente parar para pensar em todas as lembranças e histórias ali vividas, eu fico muito feliz de contribuir com minha arte para esse grande acervo de momentos que é o Cine Teatro Mussi”.
Próximo capitulo
“Neste ano, ao comemorarmos 70 anos da inauguração do Cine Mussi, não apenas ele como a grande maioria das salas de cinema do Brasil e do mundo está fechada. E este é um fenômeno muito revelador do poder que o cinema ainda detém. Estas estruturas, por suas plateias com potencial de aglomerar centenas de pessoas, foram um dos primeiros serviços a serem fechados no Brasil em março de 2020, quando foi reconhecida a emergência da situação de pandemia do Covid-19. No momento em que a realidade copia e supera as ficções mais distópicas já projetadas em uma tela, as salas foram apagadas e silenciadas. Mas não o cinema”, diz Renata Pozzo.
Sem receber público desde março, com exceção de alguns artistas que se apresentaram em live restrita, o Cine Teatro Mussi aguarda o desfecho dos próximos capítulos do seu enredo. O Portal Agora Laguna revelou em setembro que o Sesc tem a intenção de devolver o teatro ao Iphan e esse processo já está em andamento.
Até o momento, o único final apresentado indica que a prefeitura de Laguna deverá assumir a gestão por meio da Fundação Lagunense de Cultura. Porém, o Iphan aguarda a devolução se concretizar e uma definição da gestão do órgão em Brasília, para que se saiba como será o final deste filme.