Previous
Next

Jovem denuncia ex-padrasto por estupro: ‘Aguentava tudo calada’

Previous
Next

Quase 20 anos depois, Mariana [nome fictício*] decidiu que chegou a hora de romper o silêncio e falar pela primeira vez sobre um período que ainda hoje a assombra e que ela queria poder apagar de vez de sua história. A jovem procurou o Portal Agora Laguna para contar os vários episódios de abuso sexual que sofreu durante a fase de transição da infância para a adolescência. A história dela é publicada nesta segunda-feira, 18, que marca o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.

Moradora de Pescaria Brava, ela diz que não consegue ter uma vida tranquila em decorrência da experiência traumática que viveu anos atrás. Recentemente, a jovem recebeu diagnóstico de depressão e de que é portadora da síndrome de borderline, uma forma de transtorno de personalidade. “Eu só quero ter justiça para poder ter um pouco de paz. Os traumas ficarão para sempre, mas a justiça tem que ser feita”, justifica sobre a decisão de contar sua história.

Mariana foi abusada pela primeira vez aos nove anos, em “uma noite fria” quando “estava com medo”, por um homem que entrou em sua vida para ser seu padrasto e que deveria garantir segurança e proteção. “Eu vi uma mão me acariciando entre a barriga e minha parte íntima. Eu não sabia o que era aquilo ou que sensação era aquela, pois eu só tinha nove anos, era uma criança sem maldade alguma”, lembra. Acompanhe o relato na íntegra ao fim da reportagem.

A inocência dela foi corrompida pelos atos. Os abusos seguiram até o início da pré-adolescência, quando ela já tinha seus 12-13 anos. “Quando me abraçava, segurava os meus seios – que ainda estavam se formando – e eu não entendia o que era aquilo, não sabia se ser ‘pai’ permitia que ele fizesse isso”.

Na fase de crescimento e puberdade, teve a privacidade reduzida pelo ex-padrasto. “Até a fase adulta, por diversas vezes, peguei ele me espiando por gretas de portas e furos que apareciam misteriosamente na parede da minha antiga casa”, conta.

Por sentir pavor, Mariana nunca comentou disso com a família. “Era horrível, eu aguentava tudo aquilo calada por medo de estragar a vida, aparentemente ‘boa’, dos meus familiares, já que ele ajudava bastante financeiramente”, descreve. Os atos sofridos a acompanharam por boa parte da vida, e se refletiram em muitas ocasiões. As síndromes adquiridas a impediram de conseguir um emprego por exemplo e, não fosse a ajuda dos amigos, também não teria conseguido se formar na escola.

Polícia Civil analisa o caso

Os relatos de Mariana também são de conhecimento da Polícia Civil de Laguna que, embora muito tempo tenha passado, investiga o caso desde que um boletim de ocorrência foi registrado na Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (Dpcami), responsável por essas ocorrências.

Dados levantados pela reportagem junto à Dpcami apontam para o registro, em 2019, de 148 inquéritos policiais, sendo nove sobre estupros de vulneráveis – três são casos de violência doméstica. Se comparado com 2018 houve queda: naquele ano, foram 13 inquéritos de estupros de vulneráveis, sendo cinco referentes a casos ocorridos em âmbito familiar.

Até o final de abril de 2020, já foram registrados 44 inquéritos – dois de estupro de vulnerável. Um dos casos mais recentes ocorridos na circunscrição da Delegacia Regional de Laguna, está em investigação pela polícia de Imbituba.

Um mandado de prisão preventiva foi cumprido no último sábado, 16, mas detalhes mais concretos da investigação não foram divulgados, para evitar a criação de um novo “caso Escola Base”, em que houve exposição além do que deveria e trouxe prejuízos irreparáveis às imagens das pessoas investigadas. A apuração é referente aos crimes de estupro de vulnerável, assédio e importunação sexual cometidos contra crianças ou adolescentes”.

Psicóloga alerta para importância de instrução sobre sexualidade

Casos como o de Mariana alertam para uma situação ainda mais preocupante. Os dados do Disque 100 – canal criado para recebimento de denúncias de violações aos direitos humanos – divulgados nesta segunda-feira, 18, mostram que ao longo de 2019 foram feitos 159 mil registros. Destes, 86,8 mil são de violações de direitos de crianças ou adolescentes, um aumento de quase 14% em relação a 2018. Já a violência sexual responde por 11% das denúncias, cerca de 17 mil ocorrências – uma queda de 0,3% se comparado com o ano anterior.

A análise dos dados publicados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) indica que a maioria (mais de 73%) dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes foram feitos por pessoas do círculo familiar. 40% dos registros mostram que o crime foi cometido pelo pai ou padrasto.

A faixa etária das denúncias também traz outro panorama. Em 87% dos casos, a pessoa que comete o ato é homem e, igualmente, de idade adulta, entre 25 e 40 anos, para 62% dos casos. A vítima é adolescente, entre 12 e 17 anos, do sexo feminino em 46% das denúncias recebidas.

A psicóloga Caroline Fernandes, do hospital de Laguna, ouvida pela reportagem, acrescenta mais uma observação: “Estudos científicos apontam que, na maioria das vezes, o abusador/molestador possui histórico de transtorno mental e, também, de ter sido vítima de abuso sexual na infância ou adolescência”, acrescenta. “O que motiva o agressor a cometer o abuso sexual: a fantasia, os desejos e comportamentos excitantes; ele considera a vítima um objeto sexual, única via de excitação e de canalização de suas fantasias”.

O psicólogo é um dos profissionais mais indicados para atuar frente a uma situação de abuso sexual e faz o papel de acolhimento, oferece escuta qualificada e intervenção adequada. Para isso, precisa estar capacitado para auxiliar na reconstrução da vida da criança e a superação dos traumas sofridos.

Caroline avalia que é importante trabalhar com as crianças e adolescentes a conscientização acerca da própria sexualidade, conforme as características de cada faixa etária, assim como desenvolver a capacidade de falar de situações de perigo e de dizer ‘não’. “A escola pode auxiliar neste processo através de orientações e a criança perceber se está sendo abusada e, também, como se defender. A sexualidade precisa ser tema de diálogo, de forma natural tanto na escola quanto no ambiente familiar”, frisa.

Sinais que a criança ou adolescente apresenta

A psicóloga observa que é na fase da infância que a pessoa começa a ter a personalidade moldada. Por isso, algumas ações tomadas durante essa formação podem ajudar a criança ou o adolescente a ter atitudes mais sólidas frente a uma situação de atormentação sexual.

Ela orienta que é importante a família observar os indícios de que o menor passa por situações de abuso. “Devem estar atentos principalmente às mudanças bruscas de comportamentos, como por exemplo: queda no rendimento escolar, sintomas depressivos (ideação suicida, auto flagelação, etc), sentimento de culpa constante, comportamentos agressivos e impulsivos, brincadeiras sexuais persistentes e inadequadas”.

A detecção desses detalhes ainda cedo, podem ajudar a diminuir as consequências do abuso sexual, que vão desde físicas a sociais. “Os traumas poderão comprometer seriamente a vida da vítima que passou por determinada violência. A experiência da violação do próprio corpo faz com que a vítima reaja de forma somática e patológica, uma vez que sensações novas foram despertadas e não puderam ser evitadas”, acrescenta.

Caroline descreve que o comportamento da criança se modifica por completo, já que um sentimento de medo enorme é desenvolvido, muito provavelmente por ameaças para manter o ‘segredo’ do ato. O agressor, geralmente, faz com que a criança participe do abuso, levando a crer que aquilo nada mais é do que um jogo divertido. Ele, frequentemente, sabe o que agrada as crianças e as recompensa ou suborna.

A partir desses pontos é que é necessário buscar auxílio profissional sobre a situação. Se a criança ou adolescente for levada a um psicólogo, por exemplo, ao apresentar alterações comportamentais, o profissional tem o dever de denunciar aos órgãos competentes para maiores investigações do caso.

A pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2) trouxe algumas restrições quanto ao atendimento presencial, mas segundo a prefeitura de Laguna, a rede socioassistencial do município foi instruída a intensificar o trabalho de monitoramento por denúncias através de outros meios, como o telefone.

“Ao perceber o menor sinal de abuso ou, até mesmo, na suspeita deste, faça a devida comunicação aos órgãos competentes, seja ele o Conselho Tutelar, polícias Militar, Civil, ou até mesmo pelo Disque 100, em que o denunciante poderá relatar o caso anonimamente”, orienta a advogada Pollyana Alvim de Andrade, coordenadora do Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas) de Laguna.

Leia o relato de Mariana*

Sofri abuso sexual dos nove aos 12-13 anos. Sofri o abuso pelo meu ex-padrasto. Minha mãe nunca desconfiou, sempre se preocupou em não deixar faltar nada dentro de casa.

O primeiro abuso aconteceu quando eu tinha nove anos. Era uma noite fria e eu estava com medo e fui dormir na cama da minha mãe, mas sem autorização dela. Como ela estava dormindo, nem me viu entrar no meio [deles]. Até aí tudo bem, quando de repente, eu vi uma mão me acariciando entre a barriga e minha parte íntima. Eu não sabia o que era aquilo ou que sensação era aquela pois eu só tinha nove anos, era uma criança sem maldade alguma.

Isso aconteceu algumas vezes enquanto eu estava na fase primária.

Quando estava entrando na adolescência 11-12 anos, que comecei a me transformar em uma mulher, ele começou a abusar de mim nos abraços ou quando chegava perto. Quando me abraçava, segurava os meus seios – que ainda estavam se formando – e eu não entendia o que era aquilo, não sabia se ser “pai” permitia que ele fizesse isso.

Quando entrei na adolescência até a fase adulta, por diversas vezes, peguei ele me espiando por gretas de portas e furos que apareciam misteriosamente na parede da minha antiga casa. Era horrível, eu aguentava tudo aquilo calada por medo de estragar a vida, aparentemente “boa”, dos meus familiares, já que ele ajudava bastante financeiramente.

Muitas vezes já ouvi me chamar de “gostosa” após eu virar as costas depois de conversar com ele sobre algum assunto. Sempre guardei tudo para mim! Algumas vezes quando eu era jovem, ele batia fotos do meu corpo escondido e guardava para ele. Não só do meu, mas como de minhas colegas também.

Hoje, passando dos 20 anos, eu não consigo ter uma vida normal, pois desenvolvi vários transtornos psicológicos por conta do trauma que vivi durante toda minha vida até aqui. Sofro de depressão e transtorno de personalidade borderline. Não consigo estudar ou arrumar um emprego por conta dos traumas que me cercam.

*Mariana é um nome fictício. Foi escolhido para preservar a identidade da vítima.

Previous
Next

Notícias relacionadas