Laguna entra em fevereiro se reencontrando com uma parte importante do seu coração comercial: o Mercado Público Municipal. Fechado desde 2015 para uma necessária reforma, que trará novidades à estrutura dos anos 50, a edificação foi reinaugurada pelo Iphan e prefeitura no fim da tarde de sexta-feira, 31.
A edificação recebeu as obras para ser potencializada como um atrativo turístico e valorizar o comércio e a pesca, forças motoras socioeconômicas da cidade juliana.
“Concluímos o ciclo desta obra”, resumiu o prefeito Mauro Candemil (MDB), ao discursar na solenidade. Para garantir o reinício dos trabalhos, a prefeitura desembolsou pouco mais de R$ 1 milhão. “Esse é um dos principais equipamentos culturais e econômico da cidade, aqui as pessoas trocam vivências e convivem”, acrescenta o presidente interino do Iphan, Robson de Almeida.
O mercado recuperou características arquitetônicas e ganhou novidades. O destaque prinicipal fica pelo deck panorâmico de madeira e uma área coberta em vidro que ampliaram a área pública do prédio e deram um visual novo à lagoa Santo Antônio dos Anjos.
No primeiro e no segundo dia, a curiosidade de reencontrar o Mercado Público levou centenas de lagunenses ao prédio. “Ficou muito lindo, e com certeza voltarei aqui mais vezes. Ainda quero ver o pôr-do-sol”, comenta a lagunense Elizabete Jubilado, que visitou o local acompanhada da filha.
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Neste momento inicial, o visitante que chegar ao Mercado Público vai ser recebido pela dupla de atores tubaronenses Ricardo Wandressen e Rubia Nandi, da Companhia Ludicoz. Eles dão vida a um casal de ‘manezinhos’ – como são chamados os moradores da capital, que têm origem açoriana – de Florianópolis.
“Nós morávamos em Laguna e vamos contar a história do Mercado Público. A gente conheceu esse mercado antigamente, era lindo, e agora tá mais lindo ainda”, diz a rendeira vivida por Rubia. “Com certeza o daqui é melhor que o de Florianópolis, é mais atualizado”, brinca o pescador interpretado por Wandressen.
Além dos artistas, o mercado será transformado em uma vitrine de artesanato. Isso porque aos sábados das 14h às 19h, o prédio receberá os artesãos da Feira Livre e da Feira da Amizade, que tradicionalmente ocupam a praça da matriz. “Teremos uma programação cultural extensa. O mercado é um espaço de visitação, teremos aos sábado: música, feira, dança, etc”, adianta a presidente da Fundação Lagunense de Cultura (FLC), Mirela Honorato. “[Esse modelo de ocupação] será permanente e parte do aluguel do mercado será usado como edital de chamamento para que possamos contratar atrações de Laguna”, pontua.
“Isso é muito importante e gratificante, pois estamos trazendo a vida ao mercado, que abriu as portas ontem ainda sem as lojas”, avalia Sabrina Tolotti, da Feira Livre. “Sentimos uma procura pelo mercado e vemos que nesse primeiro dia tivemos uma recepção muito boa e esperamos que o turista valorize o que é nosso”, complementa Julia Guedes, da Feira da Amizade.
Para a doceira Cristiane Belmiro, a oportunidade é excepcional. “Conseguimos um lugar maravilhoso para expormos nossos produtos, e estamos muito felizes de poder estar aqui dando essa abertura [ao mercado]”, diz.
Comércio volta após licitação
Os 24 boxes do Mercado Público receberam portas automáticas e foram todos reformados. A ocupação deles de maneira comercial vai acontecer após a conclusão dos trâmites para licitar os espaços.
A prefeitura quis conceder por dez anos, prorrogáveis por mais dez. Mas a câmara rebaixou o período para quatro, extensíveis por mais quatro. Em dezembro de 2019, Candemil disse que o município iria aceitar a decisão sem interpor projeto para mudar o período.
De acordo com a secretária Luciana Fernandes Pereira, gestora de Administração, Finanças e Serviços Públicos, essa alteração e mais uma emenda que modificou um dos usos previstos causou atrasos no processo.
A intenção é que o edital, com valores de alguéis revisados, seja lançado em nas primeiras semanas de fevereiro. Entre os boxes, há um restaurante panorâmico no pavimento superior
Primeiro mercado surgiu em 1897 e pegou fogo
O mercado tem um objetivo principal, que é agrupar os principais comércios da cidade em um único local. Foi com essa ideia que o município criou seu primeiro mercado público ainda no final do século 19. Inaugurado numa época em que as novidades chegavam por via marítima e o trem começava a se popularizar, a pioneira edificação ficava localizada alguns metros à frente e mais ao lado da atual construção.
A obra foi idealizada e entregue para a população em 1º de janeiro de 1897 pelo coronel português Antônio Pinto da Costa Carneiro, que por diversas vezes assumiu o cargo de intendente municipal (como era denominado até 1930 a função de prefeito).
“A frente principal do edifício mede 14 metros sobre 24 de comprimento. […] As decorações são todas em cimento. Há duas cobertas de telha francesa com ornamento de lambrequins, existindo duas grandes vidraças corridas entre as duas. Nas quatro faces do edifício há portões de ferro. O chão interior, é ladrilhado em cimento, com os respectivos canos de esgotos por baixo, em direção ao cano principal, que passa ao lado do edifício”, descreveu, em novembro de 1896, o jornal A República, de Florianópolis, cidade que também erguia um mercado com as mesmas características. Um vendaval em setembro do ano seguinte destelhou parte da edificação – um “grande prejuízo”, disse um correspondente do mesmo jornal.
No mercado municipal eram vendidos diversos produtos. Armazéns comerciais que marcaram época se instalaram ali. A conexão com o porto era um fator positivo para os comerciantes daquele tempo, que recebiam as novidades vindas de outros locais do país, através da ligação marítima. No entorno da edificação havia barracas para venda de peixe e também uma fonte de água, conectada à Carioca por meio de uma galeria subterrânea.
O prédio existiu por cerca de 40 anos em pleno funcionamento. Em 1937, numa noite chuvosa de 20 de agosto, a cidade foi acordada de madrugada pelas cornetas da Carbonífera Araranguá (sediada onde hoje é o Memorial Tordesilhas). Como não existiam bombeiros à época, os moradores mais próximos do mercado correram para o cais e começaram a apagar o incêndio que consumiu a estrutura por completo.
Inquérito policial chegou a ser aberto. Mas nunca se soube o autor do crime, que foi considerado pela Secretaria de Estado da Justiça como criminoso. O prédio erguido no fim do século 19, desaparecia e os comerciantes ficaram sem ter onde expor seus produtos.
Segundo mercado surgiu quase 20 anos depois
As ruínas incendiadas do mercado ficaram de pé até o final da década de 1950. Naquela época, assumiu a gestão municipal o prefeito Walmor de Oliveira (PTB), que chegou a ser deputado estadual pela cidade e fundador da extinta Rádio Garibaldi.
Oliveira apresentou a ideia de fazer um novo mercado. Para erguer a obra, a prefeitura ia vendendo os espaços comerciais e com o dinheiro da venda conseguia dar seguimento à construção. A edificação foi concluída em 1958 após dois anos de obras, tendo linguagem arquitetônica com traços Art Déco, considerada moderna para a época – o Cine Mussi, de 1948, também tem a mesma escola de arquitetura.
O novo espaço foi inaugurado em 19 de janeiro de 1958, com enorme festa por Walmor de Oliveira. “[O prefeito] ia vendendo os boxes e conseguindo dinheiro pra tocar a obra. Era muita gente instalada com tabuleiros pelos corredores do Mercado. Depois de um tempo e juntando meu dinheirinho, eu comprei com muito esforço, com papel passado na prefeitura, o box do João Ribeiro. Era o de número 11”, relembrou anos depois, em entrevista ao jornalista Valmir Guedes Júnior, o comerciante Manoel da Costa, o Lelé, que por 56 anos comercializou produtos no mercado.
Desde sua inauguração e até o anos 1980, o comércio ocupou o pavimento térreo. O piso superior foi ocupado pela prefeitura da cidade e também pela Câmara de Vereadores. A edificação foi ampliada dez anos depois na gestão de Juaci Ungaretti (MDB). Nas administrações de João Gualberto Pereira (PPB), Nelson Abraham Netto (PMDB) e Adílcio Cadorin (PDT), o prédio também sofreu modificações.
No mercado, bares, restaurantes, peixarias, e outros comércios dividiam espaço nos boxes. Em 2007, Laguna foi considerada uma cidade-pólo, sendo escolhida por sua importância cultural e histórica pelo BNDES para ter prioridade na aplicação de recursos do banco em investimentos de recuperação.
Um ano depois, na gestão Célio Antônio (2005-2012) foram entregues o projeto de requalificação do Mercado Público, projetos de natureza museológico do Memorial Tordesilhas e Museu Histórico Anita Garibaldi. A licitação saiu em 2013, com a ordem de serviço sendo assinada em 2014 pelo então prefeito Everaldo dos Santos (2013-2016) e o prédio, desocupado.
Ainda naquele ano, a prefeitura iniciou o processo de contratação de empresa para a elaboração do projeto museológico e museográfico do Memorial Tordesilhas e Museu Anita Garibaldi. Foram disponibilizados recursos de R$ 498 mil destinados para a implantação da museologia e serviços de pesquisa e produção do acervo. A essa altura, a obra do Mercado Público já havia iniciado.
Reinício das obras
Em 2015, a prefeitura e a Fundação Lagunense de Cultura (FLC) foram alvo de operação que cumpriu mandados de busca e apreensão devido a irregularidades na comprovação financeira dos projetos museográfico e museológico do Memorial Tordesilhas e museu Anita Garibaldi. A obra do Mercado era atrelada a ambos os projetos e acabou sendo paralisada.
Dois anos depois, o governo municipal e a autarquia cultural da cidade entraram em discussão com o BNDES para separar os projetos e reiniciar os trabalhos do mercado público.
“Havia um ruído de comunicação entre o município e o BNDES e conseguimos retomar o diálogo. Eles acreditaram muito na nossa postura, na nossa palavra e isso permitiu que o restauro do Mercado Público fosse recomeçado. Não foi nem um pouco simples fazer essa retomada”, relembra o ex-presidente da FLC, Márcio José Rodrigues Filho, que atuou em conjunto com a atual presidente e também a ex-secretária de Planejamento Urbano, Silvânia Cappua, no processo de retorno.
Rodrigues Filho diz que chegou a ser cogitada a possibilidade de Laguna ter que devolver os valores investidos no memorial, para que a obra fosse retomada. “Buscou-se a muito custo evitar a devolução de recursos do Município, com a adequação dos projetos. Mas a equipe do BNDES foi firme em requerer a devolução dos recursos para a retomada dos desembolsos”. Para garantir que os trabalhos fossem continuados, Laguna precisou devolver quase R$ 800 mil referentes apenas ao ponto que havia motivado a operação de busca e apreensão.
O ex-presidente da autarquia cultural da cidade avalia que a devolução do mercado à sociedade é um momento de alegria. “É perceptível no rosto das pessoas que a cidade voltou a ter um pouco mais de autoestima”, comemora.